por Annette Michelson
October, vol. 83, Winter 1998
"Adoro ir ao cinema. O que detesto são as imagens na tela.
— T. W. Adorno, “Transparências Cinematográficas” (1966)"
Aniversários têm uma natureza dúbia: incentivam rituais de celebração e de comemoração, e esse foi evidentemente o caso do centenário do cinema – o que é compreensível, pois agora, na era da imagem digitalizada, devemos começar a interpretar a noção de cinema numa forma consideravelmente ampliada. Esse passo não é fácil de se dar, pois ele força, com certa violência, um sentido internalizado de uma ontologia gerada por um século de engajamento com a prática e a teoria, formal e improvisada. Foi dessa forma que as festividades de 1995 se mesclaram com expressões de luto. As solicitações para o trabalho de luto foram ouvidas tanto aqui como no exterior pela morte do meio e dos seus devotos, pelo fim da cinefilia. Entretanto, como não existe uma coisa que seria “a cinefilia”, mas sim formas e períodos de cinefilia, sua complexa história ao longo de seu primeiro século sugere, na realidade, que a cinefilia pode de fato ter um futuro no âmbito da sua construção expandida.
Estarei considerando uma forma de cinefilia que se desenvolveu em um ambiente muito particular, o dos cineastas norte-americanos de convicções e produções independentes, sustentadas ao longo de meio século pelo desenvolvimento de um movimento de dissociação da feitura de filmes das normas e restrições da produção industrial[1].
Considere, então, uma imagem – não de um filme, mas de uma sala para a exibição de filmes: um dispositivo projetivo e espectatorial gerado pela revisão radical da instituição e do aparato cinematográfico por um movimento. A espectatorialidade é tradicionalmente organizada dentro de uma estrutura tal que os componentes estruturais básicos da exibição cinematográfica (em oposição aos seus aspectos decorativos) variam apenas ligeiramente em relação à gama que se estende do cinema de rua à cinémathèque, o cineclube, o cinema de repertório e a sala de primeira exibição. Eles variam pouco, também, nos seus derivativos, os multiplexes, talhados daquelas estruturas mais antigas, mais grandiosas, aquelas antigamente conhecidas como “palácios do cinema”. Em todas essas salas prevalece um mapeamento aberto de assentos, com os espectadores envoltos no manto de uma escuridão frequentemente caracterizada ou quebrada por intervalos, o brilho de superfícies de paredes refletoras, as lanternas das “lanterninhas”. A tela de Edward Hopper, New York Movie (1939), documenta essa tradição, contrária ao projeto aqui considerado. Neste país a venda de doces, pipocas e refrigerantes é tradicionalmente feita no lobby, antes que o espectador ocupe o seu assento (ao invés de, como na França, dentro do espaço de projeção propriamente dito), e acredita-se que exceda em lucro a venda dos ingressos.
Na sala de cinema em questão, nenhuma forma de gratificação oral complementar era oferecida. Nela, o espectador senta solipsisticamente posicionado por divisórias erguidas em um interior completamente envolto em um tecido de absorção de luz. Aqui, de fato, estava a arquitetura da “velvet light trap”. E queremos notar que mesmo os sinais de saída minimamente luminosos foram uma concessão relutante às restrições do departamento de bombeiros. Isolado visualmente, o espectador podia estabelecer um contato táctil mínimo com a mão do vizinho, mas auditivamente o espectador estava bem isolado, com estrutura e materiais que inibiam a conversa e efetivamente abafavam todo o som de outras fontes que não aquela da tela. Foi esse isolamento que se adotou para se realçar o senso de Visão. Devo acrescentar que foram essas características, mesmo que concebidas como um meio de sacralização do objeto fílmico e essencial na concepção de um templo para a celebração ritual do cinema como prática artística, que sugeriram, desde o início, essa estrutura como um local idealmente apropriado para a visão de filmes pornográficos.
Nesta sala, dedicada à constituição, preservação e exibição museologicamente inclinada de uma história do cinema concebida canonicamente na continuidade de uma vanguarda cinematográfica internacional, legendas não eram utilizadas. Para os filmes em língua estrangeira, tanto os da era silenciosa quanto os da era sonora, as traduções de títulos e de diálogos eram disponibilizadas em tradução impressa, pois nenhum elemento exterior, visual ou auditivo, fosse ele o da legenda, era permitido usurpar a integridade imaculada da imagem. Além disso, a voga atual de acompanhamento musical para o cinema mudo, envolvida na busca de uma “autenticidade” histórica restaurada da projeção, foi banida daqui com o argumento de que tal acompanhamento – incluindo aquelas partituras que foram especialmente ou originalmente comissionadas – tinha sido primordialmente a resposta às exigências dos exibidores, e não necessariamente intrínseco estruturalmente ao projeto fílmico do autor.
Pois este cinema foi concebido preeminentemente como um gesto militante do Movimento em direção ao estabelecimento de uma politique des auteurs, concebida não como um instrumento de validação dentro do sistema de produção industrial, tal como o dos Cahiers du cinéma. Ao invés disso, esta noção do Autor estava ligada à de uma prática cinematográfica apoiada, sobretudo, por um ideal artesanal, adotado em oposição ao princípio de divisão de trabalho que incita a produção industrial. O Movimento conhecido como New American Cinema oferecia um desafio às dinâmicas do capital empreendedor e gerenciador que regulava acesso à tecnologia avançada ao mesmo tempo em que definia o papel do diretor como um capataz sujeito a vigilância gerencial e controle dentro do sistema fabril.
O cânone construído pelos fundadores da Anthology Film Archives – todos realizadores – articulou a necessidade sentida por eles de uma política de produção e exibição para suportar a reconfiguração da história do cinema, uma que levasse em conta o desenvolvimento intensivo de práticas independentes e opositoras desenvolvidas amplamente, embora nem sempre exclusivamente, no interior dos Estados Unidos ao longo das três décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial. Esse cânone foi fundamentado na defesa e ilustração da produção pelas gerações pós-guerra daqueles cineastas de convicção independente que seguiram os passos da conquista de Maya Deren tanto na teoria como na prática da época[2]. Essa perspectiva implicou em uma reavaliação da produção passada, e foi assim que essas sucessivas novas ondas de Independentes encontraram ingresso na companhia dos Lumières, de Eisenstein, Vertov, Cocteau, Vigo, Bresson, Murnau, Renoir, Keaton, Rossellini, Dreyer, entre outros, dentro da recém-formada política de coleção e programação da instituição. Esse cânone evidentemente se sobrepunha ao estabelecido pelos Cahiers du cinéma. No entanto, sua abertura para uma produção artesanal pautada pelo alto modernismo da pintura americana, música, poesia e performance foi sua característica distintiva.
Por fim, o princípio de exibição desta sala adotou a forma do loop (sujeito à amplificação, quando não à revisão fundamental), projetado para desenrolar e rebobinar ano após ano para a edificação das gerações sucessivas, recomeçando sempre a série canônica de filmes apresentados na ordem alfabética do nome do cineasta. Assim, Bresson e Buñuel, vindos após Brakhage, eram todos igualmente implicados num continuum que não respeitava nem a cronologia nem a hierarquia por idade ou reputação – um continuum no qual, deve ser observado, a história foi elidida num passo propedêutico para a sua configuração crítica. Concebida como um braço museológico do Movimento, este arquivo forneceu outra demonstração da maneira em que a museologia tradicionalmente forma o conhecimento.
O princípio do loop como a forma ideal de exibição do cânone foi, como outros aspectos importantes da estética da instituição, concebido em uma relação análoga ao trabalho de um dos seus fundadores e espíritos animadores, o do cineasta vienense Peter Kubelka, cuja própria prática como arquivista e programador na Cinemateca de Viena, localizada nas próprias instalações da Galeria Albertina (cuja situação na Ringstrasse sugere o determinante morfológico de sua prática como realizador e curador), era museologicamente orientada. Kubelka compôs, através dos loops de Adebar (1957) e Arnulf Rainer (1958-60), suas alternâncias radicalmente minimalistas de telas em preto e branco e de “ruído branco” com silêncio, um projeto essencialista de máxima intensidade e pureza. Ali, de fato, os filmes eram compostos como se estivessem na ordem da cinefilia iconoclasta de Adorno, purgada de qualquer traço de mimese, finalmente realizado (réalisés) [3]. Eis um projeto análogo em sua iconoclastia à do Suprematismo promulgada por Malevich a partir de 1915. “Até agora nós tivemos o realismo dos objetos, mas não o das unidades de cores pintadas”, declarou Malevich[4]. E recorda-se que, antecipando Adorno na expressão do seu próprio desdém do mimético, ele entrou em um debate (um verdadeiro dialogue de sourds) com Eisenstein através de dois ensaios polêmicos de 1925 e 1926, “And Images Triumph on the Screen” e “Artists and the Cinema”[5]. Se dissermos que Malevich teria encontrado a sua posteridade meio século depois (na pintura de Robert Ryman, Ad Reinhardt, Yves Klein e Agnes Martin), Kubelka, trabalhando dentro da acelerada história da vanguarda de Nova York, encontrou-a dentro de uma década – no fim dos anos 1960 e início dos anos 1970 – no clima gerado pela escultura e pintura “Minimalista” e a produção fílmica para a qual P. Adams Sitney empregou o considerável problemático termo “estrutural”[6].
Este foi, então, o projeto do Anthology Film Archives, estabelecido há pouco mais de um quarto de século sob a direção de Jonas Mekas. Este projeto ofereceu, através da intensidade do seu compromisso para a preservação e documentação do trabalho fílmico, através de uma fastidiosa técnica de projeção reforçada pelas propriedades absortivas de sua configuração, um repertório determinado por um comitê de realizadores, um cânone concebido, como notado acima, para a edificação das gerações sucessivas. Esse repertório articulou uma versão prescritivamente utópica e redentora da cinefilia, e é esta versão, frequentemente atacada como uma forma de perversão da cinefilia, que vou considerar.
Era, de fato, a versão de intelectuais e artistas nutridos pela tradição modernista. Ao contrário de seus contemporâneos europeus, que tendiam a rotulá-la como “perversa”, “caótica”, “fútil” ou “irrelevante”, foi-lhes negado acesso à economia e tecnologia de um sistema de estúdios modelado sobre a indústria automobilística[7]. Sistemas europeus de produção, organizados de forma diferente e de certa forma mais flexível, eram em muitos casos subvencionados pelo estado, sustentando assim uma margem de possível entrada para o ambicioso jovem Independente. E foi, naturalmente, a ameaça representada pelo próprio sucesso dentro do mercado internacional da produção industrial americana, tão profundamente admirada no exterior (o cinema de Hitchcock, Hawks, Ford, Lang, Ray, Minnelli, entre tantos outros), que impeliu a indústria francesa a abrir caminho para uma jovem geração de cineastas, capazes, na alvorada da era televisiva do começo dos anos 1960, de atrair públicos mais jovens e maiores para os cinemas. (Os membros dessa geração, representada em parte pelo que se tornou conhecido como nouvelle vague, são agora, obviamente, os veteranos de uma nova produção industrial recentemente ameaçada na Europa).
A força dessa cinefilia perversa e altamente produtiva reside no seu impulso opositor e, de fato, transgressor rumo a um cinema da diferença. Seus defensores eram, obviamente, os herdeiros de uma cultura fílmica de massa, mas eram igualmente animados pela cultura do alto modernismo, e a tensão entre as duas culturas virá à tona com o desenvolvimento global deste movimento dos Independentes. Resumidamente essa tensão em um nível animará o debate entre o projeto de Brakhage e de Deren, por um lado, e de Warhol e Jack Smith em outro. Em ambas as instâncias, contudo, o projeto geral era, em sua natureza, profundamente transgressivo. Entretanto, fazemos bem em parar neste ponto para investigar a natureza e as implicações desta cinefilia perversa e obviamente fetichista, literalizada, reificada, por assim dizer, pelo projeto do Anthology Film Archives. Para fazê-lo, evoco as séries publicadas de diálogos sobre os temas de desejo e perversão, organizadas e editadas em 1965 por Guy Rosolato[8].
Rosolato designou o fetichismo como um ponto de partida privilegiado para estas trocas, vinculando, em uma maneira que parece particularmente apropriada para consideração no presente contexto, as três estruturas do fetichismo, gnose como conhecimento redentor, e perversão. Portanto: “Realmente parece que a perversão está para a gnose como a neurose obsessiva está para uma religião de tradição ritualizada.”[9] E Piera Aulagnier-Spairani, em resposta, apontou: “Se é verdade que o ato perverso consiste em uma sacralização do fetiche, parece igualmente importante relembrar que isto requer uma cerimônia permanentemente imutável, formas de regulação, e que o significado deste requerimento não deve ser subestimado”[10].
Devemos entender essa cinefilia perversa como de oposição, e seu impulso transgressivo como o ímpeto do Movimento rumo a um cinema da diferença. O primeiro objeto desse impulso transgressivo foi a mística do profissionalismo. Uma completa compreensão disto requereria a consideração da rejeição – crítica, sistemática e categórica no caso de Stan Brakhage – dos códigos existentes e da técnicas de representação cinematográfica[11].
Um segundo foco deste ímpeto foi aquele que havia sido repetidamente reprimido dentro da produção padronizada: o erótico, o corpo em sua plenitude de ser.
O poeta Robert Kelly, um defensor precoce do novo e independente cinema americano, coloca o caso da seguinte forma: Regozijo-me com a existência da alma... Eu louvarei apropriadamente, mas também insistirei que Shechinah caminha apenas na casa da carne, e que as entidades espirituais serão baseadas em corpos fenomenais visíveis... O filme tem constantemente evitado lidar… com o corpo humano, com a completude de que o homem está na única dimensão na qual a tela pode fazer essa completude aparente[12].
A este respeito, o trabalho pioneiro e iniciatório de colaboração do cineasta Willard Maas e o poeta britânico George Barker assume uma importância especial. Geography of the Body (1943) é inteiramente composto de planos nos quais Maas, junto com sua esposa, a cineasta Marie Menken, e Barker filmaram detalhes dos corpos uns dos outros. Em outro contexto notei como segue a maneira na qual a sucessão de close-ups extremos nos quais pele, dobra, membrana, cabelo, braço e membro são transformadas em platôs, pradarias, piscinas, cavernas, rochedos e desfiladeiros de territórios inexplorados. O filme desenvolve a grande metáfora do corpo como paisagem. Afastado, o corpo aparece como “uma América, uma Terra Nova”, seus lineamentos permeados com a emoção ameaçadora da exploração. Através do close-up, da ampliação e padrões de edição, bem como do texto, este filme trabalha para desarticular, reformar e transformar o corpo em uma paisagem, convergindo assim, em uma maneira que é ao mesmo tempo curiosa e interessante, com a microscopia fílmica que agora nos oferece passagem pelas cavidades dos sistemas reprodutivos e cardiovasculares[13].
E o recém-formado cinema independente se torna aquele em que o desejo e a sua saciação – um desejo ligado à angústia e aos prazeres dos perversos – são primeiramente articulados como nos trabalhos de Maas, Menken, Deren. Estes herdeiros da tradição da montagem hiperbólica de uma vanguarda mais antiga são celebrantes do “homem inteiro”. Promulgadores de uma gnose, um conhecimento carnal redentor do “homem inteiro”, seus trabalhos, fundamentados em uma tradição de montagem, é centrado não obstante em um erotismo de objetos parciais – de um corpo em pedaços[14]. Seriam Warhol e Jack Smith (cuja dívida com Josef von Sternberg é evidente em Flaming Creatures, 1963, e em outros trabalhos em filme e em performance) que reintroduziriam em um cinema homoerótico do início dos anos 1960 o culto do performer no centro de uma cinefilia que reintegrou e revalidou o cinema industrial popular. Esse é o cinema que antecipa o movimento pela liberação gay e se articula com a afirmação de Whitman: “Eu canto o corpo elétrico. E se o corpo não for a alma, o que é a alma?”
Se gnose é, como Rosolato propôs, “uma permanente contestação da lei, sem recurso à mediação”, pode-se bem notar também que ela forma uma espécie de estado de proliferação, de fermentação no interior da qual a descoberta, reveladora, acha solo fértil e as condições necessárias para a invenção que fornece o fundamento para o sagrado ou o estético. O sujeito perverso encontra-se assim bem situado para os tipos de reversões e revoluções que impulsionam escolhas culturais. Eles fornecem um contexto para a clarificação dos mecanismos de sublimação. Mas a energia da obsessão será dedicada ao estabelecimento de pesquisa detalhada, procedimentos legais e obediência ritual, a fixação da liturgia e de restrições necessárias[15].
Estes são os elementos que encontramos incorporados ao nível da teoria e da prática extensamente articuladas na produção textual do que se denominou New American Cinema. E eles encontraram uma concretização ainda mais impressionantemente concreta no Anthology Film Archives – em sua arquitetura, na estrutura da sua política de exibição e nos rituais circundantes, bem como em sua reconfiguração radical da história do cinema[16].
Era, naturalmente, a cinefilia de Jack Smith e de Warhol – com sua ênfase no artista-estrela – que reinstalaria e celebraria o literalmente visível “homem inteiro” através da restauração do plano de ambientação, planos longos, através da ação em tempo real e desempenho de ações. Seus trabalhos dos anos 1960, como Haircut (1963), Eat (1963), Blow Job (1963), Sleep (1963-1964) e Chelsea Girls (1966), são paradigmáticos neste quesito. É certamente Warhol quem, em uma série de movimentos amplamente conhecidos para serem recapitulados aqui, reinstalou elementos da produção industrial no estúdio conhecido como The Factory, com sua divisão de trabalho e seu sistema de superstar. E Warhol celebrou em uma série de retratos deslumbrantes a Estrela (Taylor, Monroe, Presley, entre outros) dentro das molduras revestidas em papel alumínio que, nas suas criações de um ambiente reflexivo, adotou, articulou e reificou o narcisismo de suas presas. A Factory, quando examinada como local de produção, é, como sugeri em alguma medida, a versão elaboradamente carnavalesca de uma unidade de produção industrial, com sua divisão de trabalho, escritório de relações públicas, estratégias de marketing etc.[17] Sua natureza carnavalesca, envolvendo táticas de inversão, hiperbolização e dessacralização, formou parte da estratégia de reavaliação brilhante e mais ampla de Warhol de revalorização da produção em massa e sua base empreendedora. O objeto da cinefilia de Warhol era o aparato cinematográfico e a instituição como um todo. E a oposição veemente expressada por Brakhage a Warhol, à sua insistência de que os planos longos, usados sistematicamente, transgridem a função poética do cinema, representou um ataque precisamente à restauração desses elementos gerados pela instituição cinematográfica que eram centrais à cinefilia de Warhol.
Este confronto é intensificado, epitomado em duas produções que permanecem como instâncias épicas de suas respectivas estéticas: The Art of Vision (Stan Brakhage, 1961-1965) e Chelsea Girls. E é como se o extremismo destes dois empenhos terminais fosse tal que exaurisse o espaço de confrontação, gerando o que pode ser descrito como um deslocamento do desejo cinematográfico. Nós o localizamos em parte e centralmente no uso de found footage cada vez mais frequente nos anos 1970. Sua expressão paradigmática é o filme de Ken Jacobs, Tom, Tom, the Piper’s Son (1969). Este trabalho exemplifica mais intensamente a maneira como a cinefilia do diretor, um desejo pelo cinema enquanto tal, mediada até então pelo erotismo expressivo do corpo humano, é agora desviada, reorientada, sublimada, articulada pelo corpo, o corpus do filme em si. E a cinefilia agora assumirá a aparência do meta-cinema.
Tom, Tom, então, é centrado na projeção de um filme feito em 1905 (possivelmente por Bitzer, câmera de Griffith) sobre a narrativa de uma cantiga de ninar (“Tom, Tom, the Piper’s son, stole a pig and away he run”). Jacobs, resgatando o filme da lata de cinzas da história na qual ele havia sido depositado[18], primeiro oferece o filme in extenso. Ele então segue, com o uso de um projetor analítico, refilmando o filme por uma hora no que pode ser unicamente descrita de fato como uma carícia amorosa, e com a exibição das partes íntimas do filme, até então obscurecidas[19].
Sobre esse projeto, Jacobs tem o seguinte a dizer: "A encenação e a montagem são pré-Griffith. Sete cine-tapeçarias infinitamente complexas condensam o filme original, e o estilo não é primitivo, não é anticinematográfico, mas a mais limpa e inspirada indicação de um caminho de desenvolvimento cinematográfico cujo valor somente foi redescoberto recentemente. Minha câmera enfoca, somente para melhor averiguar a infinita riqueza (jogando com o destino, tirando vantagem do caráter repetitivo de todos os filmes, retomando com variações alguns visuais complexos de novo e de novo para um desfrute particular), procurando as incongruências na narrativa (uma pessoa, confusa, subitamente olha de dentro do rosto de um ator), deliciando-se com todos os fenômenos humanos bizarros da própria narrativa, e isto dentro da fantasia de ler qualquer tempo passado a partir das cruezas visuais do sonho cinematográfico dentro de um sonho[20]!"
Este filme, portanto, representa o deslocamento para outro local de desejo. Tom, Tom é, na realidade, a demonstração da carícia amorosa nesse objeto primitivo do desejo, o cinema, pelo uso de close-up, câmera lenta (combinada com panorâmicas e mudanças de ângulo), mascaramento e congelamento de quadro. Seu enquadramento e reenquadramento evocam com força singular a maneira como Christian Metz descreveu o enquadramento fílmico através da metáfora do striptease que provoca e renova a provocação por meio de uma espécie de esconde-esconde.
A forma com que o cinema, com seus quadros vagantes (vagando como o olhar, como a carícia), acha um meio de revelar o espaço tem algo a ver com uma espécie de desnudar permanente, um striptease generalizado, um menor mas mais aperfeiçoado striptease, uma vez que também torna possível vestir o espaço novamente, remover da visão o que foi mostrado previamente, retomar tanto quanto reter[21].
E de fato, quando, após uma hora dessa penetração acariciadora do objeto fílmico, Jacobs restaura e oferece mais uma vez o filme em sua totalidade intocada, temos a sensação de revestimento através de uma vista permanentemente alterada do objeto.
Esse deslocamento, marcando o ponto alto de uma cinefilia celebratória, constitui o ponto de partida, por assim dizer, para um momento sublimatório final da cinefilia deste movimento. É coincidente com outro momento particularmente interessante de ascese radical: o da posteridade de Kubelka, quando a tela está completamente limpa de imagens.
Eu não tenho uma forma melhor de descrever ou analisar este período de ascese visual do que oferecendo a seguinte anedota, extraída de uma experiência pessoal. Em 1974, enquanto preparava um catálogo para uma exibição retrospectiva na Europa do cinema independente americano, eu estava incerta quanto à escolha de uma imagem para reproduzir na capa. Pois a minha reflexão produziu uma rápida montagem de quadros individuais apropriados em incontáveis números, quando um amigo sugeriu – talvez não sem um traço de malícia – “Por que não uma tela em branco?”, ao que respondi imediatamente “Mas a tela em branco de quem? A de Brakhage, Sharits, Breer, Kubelka, Conner, Frampton ou Conrad?” Pois de fato, a tela destituída de imagens parecia estar se desenvolvendo como uma característica importante deste cinema. Víamos às vezes em cores, mais frequentemente como o brilho branco intocado da lâmpada do projetor em alternância com a escuridão da tela na sala escura. Evidentemente a posteridade de Kubelka havia chegado, e seu profeta chamava-se Tony Conrad.
E no interior desse desenvolvimento, percebe-se duas tendências emergentes. A primeira foi uma tendência crescente para a sistematicidade, em uma era em que a noção de estrutura é vista como predominante sobre a projeção da subjetividade. Isto seguiu-se ao advento do Minimalismo na pintura e escultura, e divide com eles a implantação do monocromático, de padrões de repetição e a preocupação com a coerência da gestalt compositora. E é neste momento que o vácuo da tela anteriormente cheia de imagens é preenchida com o retorno do signo linguístico. Podemos considerar o notável filme de Bruce Conner sobre o assassinato de Kennedy, Report (1967), como uma instância antecipatória; nele a trilha de imagem chega a ser inteiramente substituída pela angústia e desorientação do relatório no local da catástrofe sobre a tela escura e vazia. É, no entanto, tornado visível nas obras do cineasta Hollis Frampton, de quem Stan Brakhage uma vez comentou que “ele exauriu o cinema através da linguagem”.
Frampton abriu, de fato, uma nova era na produção do cinema de convicção independente. Ele criou em Hapax Legomena II: Poetic Justice (1972) um filme que é, de fato, inteiramente e radicalmente textual, sua tela cheia de sucessivas tomadas – uma para cada página – do manuscrito do roteiro do filme. Ler esse texto requer o reposicionamento integral do espectador, cuja projeção do filme imaginário, a narrativa de uma série aparentemente triangular de transações eróticas dentro de uma casa e de um jardim, é comunicada através de descrições por fotografias. A promessa deíctica oferecida é, no entanto, constantemente, implacavelmente adiada, e a confusão das coordenadas espaciais e o uso sistemático de deslocamentos pronominais efetuam uma dissolução e impossibilitam a construção de uma narrativa coerente.
Adorno, como observado, não havia se oposto em ir ao cinema, mas ao que ele viu como a inevitável natureza mimética da imagem fílmica[22].
Como Adorno, Barthes era um entusiasta do ritual da ida ao cinema, mas ao mesmo tempo um espectador profundamente resistente – resistente à plenitude da imagem, sua miríade de informações impostas ao espectador[23]. E foi, de fato, o tato e a economia, a discrição, a reserva do significante linguístico que Frampton ofereceu em Poetic Justice, de modo que agora existiria um cinema inventado como se para ordenar ambos. A sublimação da mímese fílmica de Frampton e a informação através da redução textual completariam e intensificariam a ascese iconoclasta introduzida pelo esvaziamento da tela, postulando, como objeto último da cinefilia, uma que fosse totalmente eidética[24].
Notas:
[1] Embora o Movimento em questão tenha sido em grande parte gerado por nativos dos Estados Unidos, os papéis de artistas da imigração em tempos de guerra e membros de uma geração mais jovem, como o austríaco Peter Kubelka e o canadense Michael Snow, entre outros, foram determinantes na sua maturação. Jonas Mekas, seu animador infatigável, começou seu trabalho como um imigrante recém-chegado da Lituânia.
[2] Os principais textos teóricos de Maya Deren estão compilados em Film Culture nº 39 (inverno de 1965). A evolução de sua carreira é traçada em The Legend of Maya Deren: A Documentary Biography and Collected Works, 2 vols., ed. VeVe A. Clark, Millicent Hodson e Catrina Neiman (New York: Anthology Film Archives, 1980). Ver também Alain-Alcide Sudre, Dialogues théoriques avec Maya Deren : Du cinéma experimental au cinéma ethnographique (Paris: L’Harmattan, 1996).
[3] Para um esboço da estética própria de Kubelka, ver a coleção de entrevistas com o realizador e ensaios sobre seu trabalho, Peter Kubelka, ed. Gabriele Jutz e Peter Tscherkassky (Viena: P.V.S. Verlegen, 1995).
[4] Esta afirmação é amplamente desenvolvida por K. S. Malevich em “From Cubism and Futurism to Suprematism: The New Realism in Painting”, Essays in Art, vol. 1, ed. Troels Andersen (Copenhague: Borgen, 1968), pp. 19-21.
[5] Ibid., pp. 226-238.
[6] Ver P. Adams Sitney, Visionary Film: The American Avant-Garde, 1943-1978 (Nova York: Oxford University Press, 1979), pp. 368-397. Nas páginas do penúltimo capítulo, Sitney desenvolve o que chama de “o desenvolvimento mais significativo do cinema de vanguarda americano desde a tendência à mitopeia... a emergência e o desenvolvimento do filme estrutural”. Ele prossegue definindo-o como um “em que a forma do filme todo é predeterminada e simplificada”, o qual gera “a impressão primordial do filme”.
[7] Assim disse Agnès Varda, em conversação em 1966 sobre o cinema de Robert Breer; ou Jacques Aumont, comentando o “guisado óptico” da vanguarda americana em sua introdução a Dziga Vertov, Écrits (Paris: Union générale d’éditions, 1970). A presente preocupação com a inscrição da dimensão corpórea do sujeito e objeto cinematográficos, exemplificado em outra parte desta edição pelo trabalho de Jean-Louis Comolli, não reconheceu até a data presente seu papel crucial na obra de Brakhage.
[8] Ver Piera Aulagnier-Spairani, Jean Clavreul, François Perrier, Guy Rosolato e Jean-Paul Valabrega, Le désir et la perversion (Paris: Éditions du Seuil, 1967).
[9] Ibid., p. 33.
[10] Ibid., p. 47.
[11] O locus classicus textual é Stan Brakhage, Metaphors on Vision (Nova York: Film Culture, 1963), páginas não numeradas. A crítica radical de Brakhage às teorias prevalecentes de visualidade e do equipamento e tecnologia padrão do cinema antecipa em aproximadamente uma década a que Godard ofereceu na aurora dos eventos de 1968.
[12] Robert Kelly, “The Image of the Body”, The Film Culture Reader, ed. P. Adams Sitney (Nova York: Praeger Publishers, 1970), pp. 393-397.
[13] Essa passagem é reproduzida de Michelson, “‘Where Is Your Rupture?’: Mass Culture and the Gesamtkunstwerk”, October vol. 56, primavera de 1991, pp. 42-55.
[14] O trabalho de Harry Smith representa uma variação particularmente interessante destes temas. Ver o seu Heaven and Earth Magic (1957-1962), também conhecido como The Magic Feature, produzido, de acordo com o relato informado de Sitney, durante os anos 1950.
[15] As formas produtivas dessas características envolveram, entre outras coisas, a documentação cuidadosa do Anthology Film Archives sobre o desenvolvimento do Movimento. Seus arquivos e a biblioteca do Archives são as fontes primárias neste país para a pesquisa da história do cinema independente do período pós-guerra. Sua concepção de restrições necessárias, sejam da sua política de exibição ou da sua arquitetura, despertou debates acalorados.
[16] O tipo de fetichização envolvida na sua função de arquivamento é, sem dúvida, inerentemente e universalmente inscrito nessa prática.
[17] Uma leitura bakhtiniana do sítio de produção de Warhol, conhecida como The Factory, é oferecida em Michelson, “‘Where Is Your Rupture?’: Mass Culture and the Gesamtkunstwerk”.
[18] Recentes desenvolvimentos na história do cinema, centrados no período anteriormente denominado como “primitivo”, têm animado um interesse mais geral neste exemplo de narrativa primeva.
[19] Essa formulação é aqui dada como uma instanciação das afirmações feitas por Christian Metz sobre a dimensão erótica do enquadramento e reenquadramento cinematográfico. Ver Metz, The Imaginary Signifier: Psychoanalysis and Cinema, trad. Celia Britton et al. (Bloomington: Indiana University Press, 1982), p. 77.
[20] Citado por Sitney em Visionary Film, p. 406.
[21] Metz, The Imaginary Signifier, p. 77.
[22] Theodor W. Adorno, “Transparências Cinematográficas”, trad. Thomas Y. Levin, New German Critique (outono/inverno de 1981), pp. 199-205.
[23] Roland Barthes, Roland Barthes par Roland Barthes (Paris: Éditions du Seuil, 1975), p. 59.
[24] Este texto, escrito em reconhecimento ao Anthology Film Archives pela sua contribuição notável ao desenvolvimento de um cinema verdadeiramente independente, foi composto por um membro do seu conselho consultivo.
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